Sun 07 Oct 2018 01:01:09 PM -03
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Procurando resolver um problema prático, este texto sistematiza uma forma de promover a ajuda múltipla através de acordos sucessivos e virais. Para auxiliar na sua compreensão, é definida uma forma de cálculo do valor social e suas consequências são avaliadas.
Motivação
Em geral, quando ajudamos alguém (principalmente quando ensinamos algo), não há muita garantia que a pessoa ajudada passará a idéia pra frente, seja ajudando outrem ou passando o conhecimento adiante. Mesmo em coletivos horizontais, não-hierárquicos e baseados na ajuda mútua, não há necessariamente uma cultura de passar para frente a ajuda recebida. Por isso, estabelecemos neste texto uma sugestão de acordos de ajuda múltipla tanto como proposta de prática e sobretudo como reflexão da distância que os grupos sociais se encontram com relação a um regime de dádiva e não-escassez.
O acordo de ajuda múltipla
Para fomentar o aumento da ajuda entre as pessoas, criaremos o conceito de ajuda múltipla e proporemos um pequeno acordo padrão para o seu estabelecimento. Pois bem: ajuda múltipla é a forma de colaboração onde uma ou mais pessoas -- grupo A -- auxiliam outras -- grupo B -- com a condição de que estas últimas efetuem ajuda múltipla auxiliando outras pessoas -- grupo C. Atente para o fato de que definição é recursiva (isto é, a definição necessita de sua própria definição): uma ajuda múltipla seria, por exemplo, Maria ajudar Lopes com a condição de que este ajude alguém no futuro. Note que o grupo C pode ser composto pelas mesmas pessoas do grupo A, mas não necessariamente: Lopes deve ajudar alguém, mas não necessariamente Maria[1].
Viralidade (ou potência) do acordo
Estamos interessados/as na possibilidade da multiplicação da ajuda e, para tanto, devemos melhorar nossa definição de ajuda múltipla: ajuda múltipla é a forma de colaboração onde uma ou mais pessoas -- grupo A -- auxiliam outras -- grupo B -- com a condição de que estas últimas efetuem pelo menos v ajudas múltiplas (onde v é um número inteiro positivo) auxiliando outras pessoas -- grupo C, D, E, etc -- com a condição de que as próximas pessoas também pratiquem ajuda múltipla e assim por diante.
Nesta segunda definição, introduzimos o que chamaremos de viralidade: não apenas a pessoa ajudada precisa participar de pelo menos mais v acordos de ajuda como as pessoas ajudadas por esses próximos v acordos precisam, após serem ajudadas, participarem como ajudantes em pelo menos mais v acordos[2].
A idéia principal da viralidade é que ela representa o custo social de uma ajuda: se recebo uma ajuda, devo retribuir não exatamente a quem me ajuda mas a todo o grupo social, participando como ajudante em pelo menos v outros acordos.
Por isso, os acordos não devem ser entendidos como moedas de troca: a moeda abstrai e aliena as relações sociais – já que pode ser trocada – enquanto que o acordo reforça e encoraja relações sociais. A moeda conserva valor (uma vez que ela é criada, basta que circule)[3]. Os acordos, ao contrário, geram valor o tempo todo por causa de sua viralidade. Eles criam valor social sem precisarem ser trocados, já que eles se reproduzem. Assim, devem ser entendidos mais na lógica da dádiva do que do contrato social.
Modelo de acordo viral
Na prática, convém termos um modelo de acordo para facilitar o dia-a-dia: pessoas nos pedem ajuda e em geral precisamos dar uma resposta rápida. Um modelo de acordo – onde o/a proponente pode ser qualquer uma das partes envolvidas e os acordos podem ser de múltiplas partes – deve ser simples e eficaz e por isso o texto do modelo de acordo abaixo serve para criar pequenos acordos entre pessoas:
Acordo de ajuda múltipla
------------------------
O/a proponente/a deste acordo tem como objetivo multiplicar seus esforços de
ajuda. Para tal, é utilizado o princípio da reprodução viral de atividades
culturais.
Neste acordo, as pessoas ajudantes concordam a ajudar as pessoas, doravante
denominadas como ajudadas, desde que as ajudadas concordem em participar como
ajudantes em pelo menos X próximos acordos deste mesmo tipo (nos quais, por sua
vez, as pessoas ajudadas deverão participar como ajudantes em pelo menos X
acordos deste mesmo tipo e assim sucessivamente).
A contrapartida não precisa ser necessariamente no mesmo teor da ajuda
prestada.
Esse modelo de acordo não pretende apenas incentivar a iniciativa e o protagonismo como também encorajar quem não ajuda ou não pede ajuda por conta de algum receio. Não podemos também deixar de mencionar que estes tipos de acordo só fazem sentido e apenas serão necessários enquanto a ajuda mútua/múltipla não for uma prática cultural comum e generalizada, quando então a prática descartará a necessidade de microacordos.
O modelo acima é apenas uma sugestão: muitos outros podem ser feitos e inclusive é possível ainda tornar tais acordos acopláveis em licenças de manipulação de conteúdo. Desde que os acordos funcionem para criarem valor no grupo social, tão melhor. Sugestões de melhoria desse modelo seriam abrir margem para uma melhor definição de contrapartidas e estipular um prazo para que o acordo seja cumprido. Sugerimos que ao menos a simplicidade, a clareza e o tamanho reduzido do acordo sejam preservados.
O valor social
Como se comportaria um grupo social onde tal prática de acordos se iniciasse ou fosse já endêmica? Para nos auxiliar nesta e noutras perguntas, podemos recorrer a um mínimo de sistematização. Considerando um grupo social de m pessoas, podemos definir a função valor social como sendo
\[S = \displaystyle\sum_{p=1}^{m}\frac{\left(p\ n_p\right)^{v}}{mr}\]
onde \(n_p\) é a quantidade de acordos existentes envolvendo \(p\) pessoas[4], cada acordo com viralidade[5] \(v\) e \(r < m\) é o número de pessoas que poderiam [6] ter efetuado acordos mas que ficaram de fora (isto é, não fizeram acordo nenhum). O valor social assim definido exibe uma série de propriedades interessantes sob o ponto de vista das interações sociais, que pode ser revelado pela simples análise das componentes da somatória.
Primeiramente, esse valor é uma propriedade do sistema social como um todo e não de um ou outro indivíduo. Em segundo lugar, quanto mais acordos envolvendo múltiplas partes, maior será o valor social: muitos acordos entre poucas partes podem ter um peso menor do que poucos acordos entre múltiplas partes. Um grupo social com muitos acordos de múltiplas partes possui maior ação coletiva (maior participação coletiva, maior coletividade) do que uma sociedade com acordos entre apenas poucas partes.
Já a quantidade \(m\) de pessoas do grupo e o total \(r\) de pessoas que não participaram de nenhum tipo de acordo contribuem na diminuição do valor social: se poucas pessoas (em relação ao total \(m\)) fazem acordo, temos uma sociedade com pouca ajuda múltipla e, portanto, para que \(S\) atinja valores significativos, é preciso que \(m\) se torne quantitativamente menor em relação aos valores dos componentes \(\left(p\ n_p\right)^{v}\). O mesmo vale para \(r\): os componentes devem ser mais significativos do que a quantidade de pessoas que poderiam estar em acordos mas que ficaram de fora, ou seja, \(S\) leva em conta a inclusão ou exclusão social da ação coletiva[7].
Por fim, a viralidade potencializa a multiplicação de acordos: quanto maior for a viralidade, maior é o valor dos acordos, pois cada acordo é um acordo de ajuda futura e portanto de investimento na potencialidade das ações coletivas.
Poderíamos ter definido um valor social de outra forma, mas sabemos que não há definição de valor que não haja um propósito e muito menos há uma definição sob a qual todas as outras se reduzem: o valor é uma propriedade definida pelo grupo social e deve servir a este: devemos buscar definições e convenções de valor (ou também suas indefinições) que nos sirvam. Não só acreditamos que esta teoria do valor sirva para mostrar como a ajuda múltipla implica numa maior ação coletiva como ainda exibe propriedades interessantíssimas do ponto de vista de sistemas dinâmicos.
Por simplificação, podemos reescrever a equação anterior como
\[S = k\displaystyle\sum_{p=1}^{m}\left(p\ n_p\right)^{v}\]
onde \(k = \frac{1}{mr}\). É claro que o valor de \(k\) pode mudar num dado grupo social – por exemplo: mais pessoas ingressando ou saindo do grupo ou então com um aumento ou diminuição de protagonistas de acordos – mas podemos considerá-lo como constante num dado momemto, ou seja, \(k = k(t)\) e independente de outras variáveis.
O que realmente nos interessa agora, no entanto, é que chega um momento em que o grupo social está com tantos acordos que, da forma como definimos na equação [eq:simples], \(S\) começa a crescer absurdamente e já não passa a representar o valor efetivo de um corpo social onde a ajuda múltipla se faz presente. Em outras palavras: chega um momento em que as pessoas já estão tão endividadas de acordos a cumprir que mais dívidas não afetarão consideravelmente no seu comportamento de ajuda múltipla. Para refrear o crescimento indiscriminado de \(S\), redefiniremos nossa função como
\[S = k\ ln\displaystyle\sum_{p=1}^{m}\left(p\ n_p\right)^{v}\]
onde ln cumpre um amortecimento no crescimento da somatória, mostrando que o valor efetivo do grupo cresce logaritmicamente: temos um rápido crescimento do valor conforme os acordos se iniciam e se multiplicam e, conforme o endividamento social cresce, a sociedade atinge patamares de valor altos demais para que um maior acréscimo se torne significativo.
Temos que, pela própria definição, \(S\) é uma função de estado, uma vez que, definido um grupo social e suas interações a partir das variáveis \(n\), \(m\), \(v\), \(r\), etc, temos que \(S\) é um indicativo do estado do sistema – indicando, por exemplo, se ele possui mais ou menos acordos (e qual a potência e alcance dos acordos) do que outro grupo social igualmente caracterizado. Além disso, obedece a
\[\frac{dS}{dt} \geq 0\]
Portanto, chamaremos nossa última definição de \(S\) (equação [eq:valor]) como entropia econômica do grupo social. Tal entropia mede, inicialmente, o grau de endividamento do corpo social. O endividamento é então a única forma de acúmulo possível: uma vez que alguém ajuda outrem, não é essa pessoa que detém um crédito: muito pelo contrário, as pessoas ajudadas contraem uma dívida com todo o corpo social, já que os acordos estipulam que a pessoa ajudada deve ajudar qualquer outra pessoa e não necessariamente quem a ajudou.
A entropia tem sido fonte de controversias e mal-entendidos quanto à sua interpretação. Pela nossa definição, temos que uma entropia maior se deve exclusivamente a um aumento da complexidade do sistema social, complexidade que medimos utilizando um conjunto de variáveis que consideramos como características do sistema[8] que de algum modo representam o seu estado. Aqui, utilizamos número de acordos, viralidade dos acordos, etc, o que caracteriza uma abordagem de granulação grosseira, ou seja, de baixa resolução. Um cálculo de valor com maior resolução deveria levar em consideração, por exemplo, os acordos separadamente ao invés de agrupá-los por partes envolvidas.
Descontrole social
Esta se torna então uma teoria do descontrole social: o aumento da entropia é, aqui, não só benéfica como desejável, já que ela indica um aumento do número de interações. Se nas teorias do controle a entropia tem um aumento indesejável, aqui se torna o comportamento almejado.
Sendo os acordos diretos, isto é, não mediados, temos ainda mais descontrole: é importantíssimo que tais acordos não sejam mediados por bancos de dados. Por banco de dados entendemos qualquer iniciativa de tentar efetivamente calcular \(S\) para um dado grupo social (e não o registro pessoal que cada indivíduo mantiver a respeito dos acordos que participou). A mera existência de um banco de dados centralizado capaz de calcular a cada instante o valor social tem os seguintes riscos:
Dá margens para o estabelecimento de controles sociais com a identificação das pessoas mais protagonistas (que participam de mais acordos), das pessoas mais prestativas (as que mais ajudam), as que mais são ajudadas e as que menos contribuem com ações coletivas, possibilitando assim represálias, etc.
Se, por um lado, o banco de dados “facilita” a busca de pessoas que querem ajuda e que podem ajudar, por outro diminuem a necessidade das pessoas de travarem contato pessoal para iniciarem seus acordos, já que o banco de dados detecta e aproxima as pessoas automaticamente.
Acredita-se que seja de interesse do grupo social que a prática da ajuda múltipla faça parte da sua cultura e não uma dependência do banco de dados (o que seria um culto ao banco de dados).
É com esse sentido de oposição aos bancos de dados que estabelecemos o conceito de valor social: não nos interessa calcular efetivamente o valor de \(S\) para um dado grupo social e muito menos caracterizar cada grupo em função desses parâmetros, o que além de policialesco não representa o real valor social do grupo (afinal, nem discutimos as diferenças qualitativas de cada acordo). Queremos, ao contrário, mostrar como se comporta um grupo social adepto de acordos virais de ajuda múltipla. Podemos resumir isso com a seguinte expressão: criamos um cálculo para auxiliar na compreensão o valor social mas jamais queremos que ele seja usado para quaintificá-lo, mesmo porque muitos valores escapam da fórmula que estabelecemos. Não necessitamos de um banco porque, na ajuda múltipla, o sistema bancário já emerge do próprio tecido social.
Desdobramentos
Não sabemos os desdobramentos desta teoria do valor e desta prática de acordos aqui sugeridas. Num primeiro momento, podemos vislumbrar que, no limite desta teoria, o endividamento excessivo devido a acordos deve produzir uma prática social indistinguível de uma economia de dádivas onde não há expectativa de retribuição direta ou o uso da dádiva como demonstração de poder[9]. No caso da pedagogia também podemos vislumbrar um ótimo uso da ajuda múltipla: pessoas que aprenderam algo podem ensinar para outras, multiplicando o conhecimento ao invés de sempre recorrerem aos luminares do saber.
Por outro lado, a existência e a propagação dos acordos pressupõem um grupo social pertencente a redes de relacionamentos afins, o que em certo sentido limita a aplicação da ajuda múltipla: e quem não participa da rede? E no caso de grupos em conflito interno?
Estas são apenas sugestões de desdobramentos possíveis: convidamos todas as pessoas que queiram contribuir para a análise de regimes econômicos fora do mercado para que pensem conjuntamente no que aqui foi meramente delineado. A experimentação também é encorajada: sem ela, toda esta discussão não passa de uma teoria descolada dos grupos sociais.
Referências
Notar que esta definição de ajuda múltipla não é necessariamente equivalente à de ajuda mútua utilizada em muitos estudos sobre economia da dádiva: em alguns deles, a ajuda mútua ocorre quando cada uma das partes envolvidas no acordo deve se ajudar reciprocamente, enquanto que na ajuda múltipla isso não é necessário. Não pretendemos neste texto sugerir a suposta superioridade do conceito de ajuda múltipla sobre a ajuda mútua. Muito pelo contrário: na falta de um devido estudo sobre a literatura existente, preferimos utilizar um termo distinto da ajuda ou apoio mútuo (mas que eventualmente possa ter o mesmo significado).
É claro que o valores de \(v\) podem ser estipulados em cada acordo.
Por conservar valor não queremos dizer que a moeda não sofre valorização e desvalorização, mas sim que a moeda “congela” trabalho.
Começamos nossa somatória com \(p = 1\) pois, apesar de ser um caso em princípio bizarro (uma pessoa fazendo acordo consigo mesmo), não deixa de ser uma possibilidade: posso, por exemplo, fazer um acordo comigo mesmo e, caso o cumpra, ajudarei mais pessoas, sendo caso clássico disso é a solidariedade de ex-viciados, por exemplo. Outro argumento para manter \(p = 1\) é a simplicidade.
Poderíamos, é claro, supor um sistema onde cada acordo tivesse uma viralidade \(v\) própria, mas a complexidade do cálculo seria desnecessária para esta primeira exposição do assunto.
Que fique claro: \(r\) não inclui pessoas que não podem ajudar, mas apenas as que podem mas que ficaram de fora dos acordos.
Alternativamente, poderíamos definir o divisor como \(m^r\) ao invés de \(mr\), o que faria com que \(S\) fosse muito mais sensível à inclusão ou exclusão social. Optamos, no entanto, por uma abordagem em que \(m\) e \(r\) contribuem com igual teor.
Num sistema mais próximo da realidade teríamos trocentas outras variáveis.
O uso da dádiva como demonstração de poder seria, por exemplo uma pessoa com mais recursos dar um presente a outra com menos recursos de forma que seja causado um vínculo de relação seja paternalista, humilhante, etc.