Sat 30 Sep 2017 02:00:50 PM -03
- Autor: Jesse Souza
Violência simbólica
Ora, como diria o insuspeito Max Weber, os ricos e felizes, em todas as
épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem
saber que têm "direito" à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio
-- mesmo o flagrantemente injusto, como o que se transmite por herança --
necessita ser "legitimado", ou seja, aceito mesmo por aqueles que foram
excluídos de todos os privilégios.
[...]
É por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das
editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos
partidos políticos. Apenas dominando todas essas estruturas é que se pode
monopolizar os recursos naturais que deveriam ser de todos, e explorar o
trabalho da imensa maioria de não-privilegiados soba a forma de taxa de lucro,
juro, renda da terra ou aluguel.
A soma dessas rendas de capital no Brasil é monopolizada em grande parte
pelo 1% mais rico da população. É o trabalho dos 99% restantes que se transfere
em grande medida para o bolso do 1% mais rico.
[...]
A tese central deste livro é que tamanha "violência simbólica" só é
possível pelo sequestro da "inteligência brasileira" para o serviço não da
imensa maioria da população, mas do 1% mais rico. [...] Esse serviço que a
imensa maioria dos intelectuais brasileiros sempre prestou e ainda presta é o
que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros
não vêm da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas
sim da "corrupção apenas do Estado".
E isso leva a uma falsa oposição entre Estado demonizado e mercado --
concentrado e superfaturado como é o mercado brasileiro --, como o reino da
virtude e da eficiência. E em um contexto no qual não existe fortuna de
brasileiro que não tenha sido construída à sombra de financiamentos e
privilégios estatais nem corrupção estatal sistemática sem conivência e
estímulo do mercado. E também em um cenário em que as classes sociais que mais
apoiam essa bandeira como se fosse sua -- os extratos conservadores da classe
média tradicional e setores ascendentes da nova classe trabalhadora -- são
precisamente as classes que mais sofrem com os bens e serviços superfaturados e
de qualidade duvidosa que o 1% mais rico vende a elas.
-- 9 a 11
Crítica das ideias
Este livro é uma história das ideias dominantes do Brasil moderno
e de sua institucionalização.
[...]
Retira-se dos indivíduos a possibilidade de compreender a totalidade da
sociedade e de suas reais contradições e conflitos, os quais são substituídos
por falsas questões. A fragmentação do conhecimento serve aos interesses dos
que estão ganhando na sociedade, já que evidencia sua mudança possível. A ação
da mudança, a capacidade moral e política de escolher caminhos alternativos
pela vontade de intervir no mundo, pressupõe "conhecimento do mundo" para não
ser "escolha cega". É isso que faz com que todo o conhecimento fragmentário e
superficial seja necessariamente conservador. Ele ajuda a manter e justificar o
que já existe.
-- 12 e 13
Interpretações que explicam o mundo
Os seres humanos são animais que se interpretam. Isso significa que não existe
"comportamento automático", este é sempre influenciado por uma "forma
específica de interpretar e compreender a vida". Essas interpretações que guiam
nossas escolhas na vida foram obras de profetas religiosos no passado. Nos
últimos duzentos anos essas interpretações, que explicam o mundo e nos dizem
como devemos agir nele, foram obras de intelectuais seculares. O mais
importante desses intelectuais no Ocidente moderno foi -- juntamente com Karl
Marx -- o sociólogo alemão Max Weber. Afinal, foi da pena de Weber que se
originou a forma predominante como todo o Ocidente moderno se autointerpreta e
se legitima. As ideias dominantes que circulam na imprensa, nas salas de aula,
nas discussões parlamentares, nas conversas de botequim -- em todo lugar -- são
sempre formas mais simplificadas de ideias produzidas por grandes pensadores.
Daí a importância de se recuperar o sentido original dessas ideias que são tão
relevantes para nossas vidas ainda que, normalmente, não nos demos conta disso.
[...]
Não existe ordem social moderna sem uma legitimação pretensamente científica
desta mesma ordem.
Talvez o uso de Max Weber e sua obra seja um dos exemplos mais significativos
do caráter bifronte da ciência: tanto como mecanismo de esclarecimento do mundo
quanto como mecanismo de encobrimento das relações de poder que permitem a
reprodução de privilégios injustos de toda a espécie.
[...]
Para a versão liberal e afirmativa, Weber fornece, por um lado, sua análise
da "revolução simbólica" do protestantismo ascético; para ele, a efetiva
revolução moderna, na medida em que transformou a "consciência" dos indivíduos
e, a partir daí, a realidade externa, é a figura do protestante ascético,
que com vontade férrea e armas da disciplina e do autocontrole cria o fundamento
histórico para a noção do "sujeito moderno".
[...]
Mas Weber, e nisso reside sua influência e atualidade extraordinária,
também compreendia, no entanto, o lado sombrio do racionalismo ocidental.
Se o pioneiro protestante ainda possuía perspectivaas éticas na sua conduta,
seu "filho" e, muito especialmente, seu "neto", habitantes do mundo secularizado,
são percebidos por Weber de modo bastante diferente. Para descrevê-los, Weber
utiliza dois "tipos ideais" [...], o "especialista sem espírito", que tudo
conhece sobre seu pequeno mundo de atividade e nada sabe (nem quer saber)
acerca de contextos mais amplos que determinam seu pequeno mundo, e, por
outro, o "homem do prazer sem coração", que tende a amesquinhar seu mundo
sentimental e emotivo à busca de prazeres momentâneos e imediatos.
-- 17 a 19
Patrimonialismo brasileiro
Toda a ambiguidade de Max Weber em relação ao capitalismo -- produtor de seres
amesquinhados precisamente nas dimensões cognitiva e moral -- e à própria
sociedade americana -- [...] foi cuidadosa e intencionalmente posta de lado.
-- 27
No começo, o aspecto mais importante era simplesmente legitimar científica
e politicamente -- com farto financiamento das agências estatais norte-americanas
nos Estados Unidos e fora dele -- a superioridade norte-americana em relação
a todas as outras sociedades.
-- 27