Sun 07 Oct 2018 12:00:00 PM -03
Sobre
- Título: A Cidade Perversa - Liberalismo e Pornografia.
- Autor: Dany-Robert Dufour.
Impressões
- Uau! Como ressoa com as leituras de Elias, Marcuse e Hans Sachs.
- Marquês de Sade versus Sady Baby?
Resumo
O livro articula a mudança do pensamento ocidental, a partir de Pascal, do paradigma agostiniano da Cidade Deus -- que seria caracterizada pelo amor a Deus e ao próximo junto com o máximo desprezo de si (paradigma ultra-altruísta) -- para a Cidade Perversa -- de característica oposta: egoísmo absoluto e desprezo ao outro -- cuja melhor exemplificação até hoje seria dada pela obra de Sade.
A noção então de que o capitalismo seria dada apenas pela orientação egóico-puritana cujo expoente clássico é Adam Smith -- e de onde a harmonia da Cidade dos Homens seria uma característica emergente, a "Mão Invisível" -- precisa ser modificada para incluir também o traço perverso. Daí que o capitalismo contemporâneo seria associado a um comportamento simultaneamente puritano e perverso.
Uma Cidade dos Homens operando como Cidade de Deus, a moral de cada cidadão seria guiada pelo princípio do máximo altruísmo: cuidar de tudo e todos, se preocupar com tudo e todos ao ponto de jamais cuidar de si. Num sistema hipotético deste tipo, haveria uma tendência ao surgimento de uma harmonia entre as pessoas pois umas cuidariam das outras onde o valor social seria dado por uma espécie de "endividamento perpétuo", conforme demonstrei para uma sociedade hipotética caracterizada pela ajuda múltipla.
O capitalismo traria uma gradual, porém acelerada, mudança onde o egoísmo se torna aceitável até a inversão da lógica da Cidade de Deus. Surge então a Cidade Perversa, onde os cidadão seriam então estimulados a adotar a postura egoísta: se não adotarem, acabam como presas fáceis de quem o adota. Surge então o valor anti-social e a desajuda múltipla, ao contrário da harmonia prevista por Smith. Pascal é o grande exemplo tanto por sua vida oscilando entre o extremo puritanismo e arroubos de vida mundana, como especialmente pelas suas iniciativas empresariais. Pascal seria o símbolo do início da permissão do ego para a satisfação das paixões em vida:
47
No fragmento 458 dos Pensamentos, Pascal enumera três concupiscências (“três
rios de fogo que abrasam a terra”), resultando da chegada do amor de si ao
primeiro plano, em detrimento do amor de Deus: a paixão de ver e saber, a
paixão dos sentidos e da carne e a paixão de dominar (libido sciendi, libido
sentiendi, libido dominandi).
As implicações dessa mudança de valor é mascarada por um puritanismo hipócrita até serem levadas às últimas consequências pela obra de Sade.
A relação maquínica de produção e consumo em escala industrial, articulando Marx e Sade (vide seleção de trechos) é crucial.
Análise
Estudo de caso: Eleições Brasil Hostil 2018
Tive um sonho muito doido, talvez um dia depois de ter terminado o livro e já ter engrenado na leitura da Psicologia de Massas do Fascismo do Reich.
Nele, ocorre um debate político em que havia três candidatos no segundo turno (uma tríade!), Haddad, Bolsonaro e uma terceira pessoa. Na pergunta sobre ética, havia apenas duas possibilidades na mesa, a de Haddad e a do terceiro/a candidato, já que Bolsonaro se apresentava sem sistema ético definido; Haddad se apresentava como seguindo a ética de Morin, mas que se parecia com uma versão cristã/satânica, perverso/puritana e formulada nos finais do período medieval, mas ainda não renascentista.
Há um momento em que Bolsonaro é instado a assumir uma posição. Ele, num estado hesitante, talvez meio confuso, afirma que não sabe explicar o porquê, como chegou à conclusão, mas julgava que sua ética era na linha moriniana... fico estupefato, neste momento consto como expectador, a platéia aplaude porque isso significa a virada para Haddad e a definição das eleições; o perverso fica confuso; eu fico confuso - "peraí, a ética moriniana não tem nada disso"; vou consultar uma "bula", onde está o resumo da ética, leio, é uma rabulagem na linha do amor Dei (amor a Deus, ao próximo) / amor sui (amor próprio).
Seria o pai castrador capitulando? Ou o sádico "mítico" (e muitos o chamam de mito) entendeu que Haddad pode representar um tipo de sadismo mais sutil e talvez assim mais perverso por ser um neoliberal disfarçado de "trabalhista" / "social democrata"?
Não exatamente. Talvez Bolsonaro capitulava para Haddad acreditando que este seria ainda mais perverso, por estar disfarçado de social-democrata disfarçado de trabalhista mas por ser um neoliberal. Capitulava, como um sádico passando a se sujeitar.
Será que isso não revelaria um pouco do balanço de economia psíquica inconsciente rolando por aí? Talvez haja uma grande parcela do eleitorado que prefira a perversidade declarada, na qual é permitido que o indivíduo puritano também pratique a perversão, ao invés de um perverso enrustido que não permita a perversão generalizada, mas só a dele?
É o que a minha psicanálise de linha bacaniana (de Baco!) mostra da psicologia de massas orientada ao fascismo.
A massa quer botar pra foder e descontar a raiva nos setores identitários pela promessa não cumprida do antigo Pai Barbudo de que haveria consumo indefinido... as pessoas foram incitadas a consumir, ainda são, mas não conseguem mais tanto por motivos materiais quanto psíquicos. O Brasil atingiu um certo limite do gozo possível nesta época.
Isso está de acordo com esta análise econômica:
O jornalista Pepe Escobar expõe sua análise quinzenal à TV 247, com
perplexidade, dizendo que não previa uma ameaça fascista no Brasil,
alertando que a vitória do candidato Jair Bolsonaro (PSL) pode jogar o
Brasil num limbo econômico de subserviência aos EUA, afastando mercados
estratégicos como o europeu e o asiático; "O futuro da humanidade está
sendo jogado no Brasil", alerta o jornalista; assista a íntegra da
análise do jornalista
[...]
Pepe considera que o grande capital prefere Haddad a Bolsonaro, porém,
o candidato do PT teria que assinar a cartilha neoliberal. "O capital
internacional vai cobrar seu preço altíssimo", avalia.
Aí recebo este voto de bom voto, esta bomba semiológica:
Tou falando?! Pura coprofagia sado-masoquista no dia de eleger o próximo Marquês de Sade!
Agora, umas palavrinhas sobre sujeição:
Urna eletrônica
Que equipamento curioso neste contexto, hein?
Urna
Deposite seu voto na urna
BURP! PUM!
Por que não "saco preto"?
Deposite seu canditado no saco preto
Embrulhe o peixe no jornal e entregue aos correligionários
Botar o voto na urna como um ritual de morte do indivíduo, de sujeição, e a urna é o caixão da sua própria autonomia, e talvez até da consciência.
Escolha o futuro próximo: governo demento-fascista-ultraliberal ou neoliberal disfarçado de social-democrata disfarçado de trabalhista em risco de virar golpe militar.
Das opções dadas, o antifascismo fala mais alto do que NONONON pra sair do dilema da urna.
As eleições são importantes, mas não definem totalmente o cenário futuro. A batalha decisiva ocorre nos corações e mentes...
O loop estranho da subjetivação
Ok, chega de eleições e voltemos aos cadáveres mais frios do sadismo literário.
O livro segue a linha da lógica cartesiana para chegar à linha dos loops estranhos, passando, usando, criticando e ultrapassando Lacan. Daí uma linha evolutiva do cartesianismo, para o lacanismo e em seguida para o hofstadterismo!
Num primeiro momento, a leitura "estourou" minha cabeça -- para usar uma expressão do próprio autor quando explica uma transição de uma perversa-puritana do "modo neurótico" para o "modo perverso" de operação -- me deixou acéfalo -- e a referência à Acéphale no livro talvez tenha passado desapercebida pelo autor e indique o próprio limite da sua obra, afora a constante referência a dualismos como physis/nomos e natureza/cultura (leis da natureza versus leis dos humanos) que poderiam ser dialogicamente articulados morinianamente, pois ele esbarrou sem querer com a própria complexidade!
Hofstadter utiliza os loops estranhos para mostrar como símbolos, "estruturas" ou "formas" ditas "irracionais" podem se enrolar, se emaranhar em configurações que apresentam padrões mais "inteligentes" -- ou seja, o racional surgindo a partir do irracional --, Dufour permanece apenas no nível lógico e aí me parece o limite de sua análise do liberalismo -- e por quê também não dizer do fascismo? -- como uma articulação puritano-perversa, pornográfica por trazer em cena o que era até então -- na Cidade dos Homens aspirando a ser Cidade de Deus -- obsceno.
Utiliza o seguinte loop estranho de "enunciação e estrutura de subjetivação" a partir da sentença "eu falo a ti a propósito dele":
.--- Ele --. (grande Sujeito)
/ \
/ \
| .-> eu -. /
`-->| |->´ (sujeito s barrado)
\_ tu <-'
Tal estrutura seria dada por conta da neotenia humana: uma resposta ao nosso desamparo neonatal e fundamental, do nosso nascimento prematuro:
220
Não se é nada disso por natureza porque a natureza é aquilo que a nós, homens,
mais falta. Com efeito, nascemos prematuros. Para os que não acreditam, eis
aqui algumas provas da prematuração do homem ao nascer: paredes cardíacas não
fechadas, imaturidade pós-natal do sistema nervoso piramidal, insuficiência dos
alvéolos pulmonares, caixa craniana não fechada (o que explica a moleira),
circunvoluções cerebrais mal desenvolvidas, ausência de polegar posterior
opositor, ausência de sistema piloso, ausência de dentição de leite ao nascer —
para não falar, nos homens, da ausência extremamente lamentável de osso peniano
ao nascer, o que poderá… tornar-se mais tarde uma experiência dolorosa. O ser
humano é, portanto, um ser de nascimento prematuro, sujeito a uma longuíssima
maternagem, incapaz de atingir seu desenvolvimento germinal completo e, no
entanto, capaz de se reproduzir e de transmitir seus caracteres de
juvenilidade, normalmente transitórios nos outros animais. Resulta disso que
esse estranho animal, inacabado, ao contrário dos outros animais, deve
completar-se em outro lugar que não a primeira natureza, ou seja, numa segunda
natureza, geralmente chamada cultura.
Não foi apenas a nossa época que se deu conta dessa fraqueza do homem. Tentei
demonstrar num trabalho anterior285 que existe uma grande narrativa,
percorrendo toda a civilização ocidental, baseada nesse inacabamento originário
do homem. Mais ainda, sabe-se hoje que toda a metafísica ocidental, seja ela
proveniente de Atenas ou de Jerusalém, fez do desamparo do homem ao nascer e na
primeira infância o ponto de partida da aventura humana. Acontece que essa
narrativa das origens baseia-se numa razão no real: desde o início do século
XX, os antropólogos falam, para se referir a essa prematuração, da neotenia do
homem.286
221
É, portanto, aí que tudo começa, com um ser incapaz e incompleto, incapaz de se
virar — vou chamá-lo aqui de o baixíssimo. Freud, por sua vez, propõe aqui o
termo da Hilflosigkeit humana, que remete ao desamparo originário do homem. É
digno de nota que esse conceito cintile ao longo de toda a extensa elaboração
freudiana. É bem verdade que não se trata de um conceito-estrela como o Édipo,
como o ego/id/superego ou como o recalque, mas é um conceito de fundo, sem o
qual os outros não teriam surgido. Ele teria sucessivas definições, cada vez
mais precisas, mas nunca seria abandonado. Indica que existe apenas uma solução
para a sobrevivência do homem: que ele supra essa falta de primeira natureza
com uma segunda natureza, a cultura. A cultura é, de certa maneira, o remédio
para a Hilflosigkeit humana. O único remédio possível. Aquele que permite ao
homem sair de seu estado marcado não só por esse inacabamento originário, mas
também por sua finitude no tempo (eu não sou para sempre; um dia, isto vai
acabar) e por seu fechamento no espaço (eu não estou em toda parte, mas aqui,
numa espécie de prisão domiciliar).
Haverá remediação se eu, ser tão mal acabado no tempo e no espaço, conseguir
supor um ser infinito em relação ao qual eu me coloque em posição de tudo
dever. Ora, supor esse ser é algo que eu posso, já que falo, e falar é fabular.
Nada, portanto, impede-me de inventar o que não existe, mas de que eu preciso
para viver. Pois se o suponho, a Ele, o Altíssimo, ou seja, o grande Sujeito,
poderei então me “sub-por” como seu sujeito — e é exatamente o que significa a
palavra “sujeito”: o subjectum em latim significa o “submisso”, ou seja, aquele
que é “posto sob”, colocado debaixo. É, portanto, necessário e suficiente que
eu conjeture um grande sujeito que supostamente tudo sabe, tudo pode e tudo vê
para que finalmente encontre o meu lugar, como sujeito desse ser. O grande
Sujeito atende então a essa definição de Aristóteles: “Ele é aquele pelo qual
tudo mais se ordena”, dizia ele na Metafísica.
Em outras palavras, a sobrevivência do homem, animal neotênico, por isso
carente de natureza, passa pela criação de seres de sobrenatureza, vale dizer,
seres de cultura que, apesar de não existirem, revelam-se dotados de uma
poderosa eficácia simbólica.
[...]
Muito bem. O único problema é que um círculo remetendo indefinidamente de s a S
e de S a s corre o risco de muito rapidamente tornar-se cansativo, pois
vicioso. Impossível, com efeito, sair dele, a menos que… A menos que a praxis
(que, vale lembrar, significa “ação” entre os gregos), resultando como tal de
uma decisão, venha a provocar o engatamento temporal, forçando as coisas. Não é
possível, com efeito, ficar dando voltas por toda uma eternidade como um
hamster na estrutura circular da subjetivação. Será necessário começar por uma
das pontas. O que implica romper a circularidade e reintroduzir uma
causalidade, que pode então ter início de duas maneiras diferentes:
— partindo de S, o grande Sujeito — será essa a escolha do crente. É uma
escolha frequente, pois tranquiliza o ser desamparado que é o homem, assim
reconfortado por se imaginar procedendo de algum deus;
— ou partindo de s — e será essa a escolha do ateu. É uma escolha mais rara,
pois recusa o consolo tão buscado e prolonga a inquietação. Por isso é que o
ateu com frequência range — ao mesmo tempo tentando dar uma forma aceitável a
esse rangido: o humor, por exemplo. Cioran — e eis aí alguém que rangia muito
—, que sabia conferir ao seu desespero essa forma polida que vem a ser o humor,
dizia: “Se existe alguém que tudo deve a Bach, é Deus.”288 Uma forma elegante
de afirmar que Deus, em Sua própria perfeição, foi criado pelos homens…
essencialmente para acalmá-los em suas angústias. Poderíamos aqui
perguntar-nos se, em última análise, existem verdadeiros ateus. O que, de fato,
não é certo. Muito simplesmente porque a estrutura funcionará tanto melhor na
medida em que o sujeito ignorar que foi ele que inventou o grande Sujeito (ou
seu substituto). Em qualquer dos casos, ele deverá dar mostra de ignorância, e
é precisamente esse não saber que necessariamente fará dele um ser sujeito ao
inconsciente.289
224
É evidente, contudo, que essas duas maneiras de começar são igualmente ruins,
na medida em que pretendem impor uma decisão no lugar do que é rigorosamente
impossível de decidir. Em suma, o homem é um ser beckettiano: finito, mal
acabado e, sobretudo, sempre necessariamente começando mal. Em tais condições,
cabe supor que o remédio para o desamparo humano venha a ser bem pior que o
mal.
Esse remédio simbólico para o desamparo real do homem tem a ver com o que
Platão chamava de pharmakon: um remédio e um veneno.290 Em suma, o Outro, esse
grande Sujeito que não existe, é de grande ajuda… até que se torne extremamente
embaraçoso.
Por isso é que estamos constantemente matando nosso salvador. Entretanto, como
o sujeito é esperto, um belo dia tomou a frente, dizendo que havia morrido por
nós — e isso se chama cristianismo. Com isso, ficou difícil matá-lo… pois ele
já está morto — e, no entanto, Nietzsche bem que tentou, e sabemos o que lhe
custou.
225
Outro traço característico dessa estrutura estranha: ela permite afirmar que,
falando estritamente, não existe sujeito. Na verdade, existe apenas um
infrassujeito (que falta a ele próprio) e um sobressujeito. Os dois, o
baixíssimo e o Altíssimo, mantêm uma relação de implicação recíproca. Se
realmente se quisesse que houvesse um sujeito, seria necessário imaginá-lo como
o que resulta da interação dessas duas instâncias.
226
Essa estrutura s/S permite, ao que me parece, dar uma nova forma, indo além da
clínica individual, ao que Freud havia denominado, num texto tão breve quanto
decisivo, um de seus últimos, divisão subjetiva (a Spaltung).291 A divisão
subjetiva é o que faz de nós seres cindidos, incapazes de jamais nos
encontrarmos, pois no exato momento em que poderíamos nos encontrar,
perdemo-nos no Outro. O psicanalista Alain Didier-Weill encontrou as palavras
mais simples e precisas para dizer essa cisão originária: “Assim que o sujeito
fala, significando-se numa fala que decide e distingue, uma parte dele,
insignificável pela fala, retira-se daquilo que foi significado e cai como que
velada.”292
[...]
229
Três respostas básicas seriam possíveis: do neurótico, do perverso e do psicótico:
Dessa estrutura circular em que o um (s) supõe o Outro (S) que “sub-põe” o um,
é possível sair de três maneiras: pela neurose, pela perversão ou pela psicose.
O que retoma em novas condições a intuição de Freud, que havia distinguido três
patologias fundamentais.
Neurose: "dívida simbólica contraída em relação ao Outro", lembando que "sujeito" vem de "sujeição", de se sujeitar:
Se a histeria constitui o protótipo da neurose, é porque o(a) histérico(a) é aquele(a) que venera o Outro por lhe ter tudo dado e ao mesmo tempo o detesta por tê-lo(a) posto na situação de tanto e tudo lhe dever. Ele/ela amará o Outro detestando-o ou o detestará amando-o. É o lugar de um nó psíquico importante, no qual constantemente se remotiva o conflito neurótico em todas as suas formas possíveis. Por exemplo, esta, que faz as delícias do histérico: seduzir o Outro — sob a figura de Deus, de um mestre, de um grande homem, etc. — ao mesmo tempo escapando-lhe.
Psicose: o caso-limite, "mais onerosa. Ela diz que se Deus é, então eu não sou":
Um combate que pode assumir duas formas opostas e complementares. Uma forma paranoica, como tal perseguida: existe um Deus que está constantemente querendo roubar meu ser, que me espiona e me persegue. E uma forma esquizofrênica e triunfante: Deus, na verdade, sou eu. Nos dois casos, essa potência manifesta-se como sobrenatural, o mais das vezes através de uma voz imperiosa que ocupa o sujeito, no sentido de tomar posse dele, de se apoderar dele.
Perversão:
Quanto à enunciação perversa, ela se esclarece nesse esquema. Ela permite entender que o que está em jogo no grande circuito enunciativo (com o “Ele”) vem a atuar no pequeno, de tal maneira que o “eu” ocupe, diante do “tu”, a posição eminente que o “Ele” ocupa em relação a todo sujeito falante (“eu” e “tu”). Em suma, o perverso coloca-se, diante de todo outro, na posição do Outro. A definição poderá ser estranhada. Mas seria um equívoco, pois ela encontra e confere sentido à maneira como Lacan definia o perverso: “O perverso imagina ser o Outro para garantir seu gozo.”302 De fato, essa proposição só pode ser realmente entendida mobilizando-se as teorias da enunciação baseadas na análise da relação de lugar entre as três pessoas verbais: “eu” (o um), “tu” (o outro) e “Ele” (o Outro). A perversão surge então como uma negação da grande estrutura, compensada por um inchaço da pequena, como se essa estrutura secundária pudesse e devesse suportar sozinha o que está em jogo na grande. Poderíamos falar aqui de uma translação do que está em jogo na estrutura principal para a estrutura secundária. O que, provavelmente, explica a seriedade com que o perverso maquina suas encenações, às vezes deploráveis, como se ele ocupasse diante de seu alter ego o lugar do Outro.
Os modos de operação individuais variariam de acordo com a ênfase dos caminhos do circuito de enunciação subjetiva.
O atual turbo-neoliberalismo é sustentado por um par operativo oscilatório neurótico-perverso.
O caso limite da psicose não é tão útil pois raramente articula com sucesso a produção e o consumo capitalistas.
Resumiria o livro com o trocadilho: "Sade, Smith e Lacan: um laço realmente estranho, mas não eterno".
E poderíamos pensar em outros tipos de diagramas e máquinas possíveis para a constituição
da relação sujeito/objeto/outro, com Sujeito-Deus, Sujeito-Leviatã, e até de Sujeito como composto
por redes de eu <-> tu
, incluindo também outros seres. Teríamos assim a possibilidade de
inúmeras montagens e configurações de redes relacionais, hierárquicas, anárquicas, poliárquicas...
uma modelagem desse tipo poderia ajudar na análise de dinâmicas sociais.
O dilema do prisioneiro
Aqui novamente esbarramos com um limite: altruísmo está situado no lugar da dívida com o outro (neurose, culpa) e não no abandono-de-si. Será mesmo que a única orientação ("drive") dos seres é a autopreservação? Marcuse parece mais apropriado neste ponto ao dar mais ênfase ao loop estranho das pulsões básicas Eros/Thanatos, que podem tanto ser entendidas como criação/destruição quanto tendências oscilantes de autopreservação ou reintegraçao/dissolução no ambiente.
Se a opção for pela cisão physis/nomos, é preciso ter muito cuidado ao tomar por naturais as "leis" inventadas pelos humanos, especialmente no campo dos jogos. Pode-se entender a teoria dos jogos enquanto melhor estratégia possível sem questionar a valoração que está por trás dela, e portanto sua arbitráriedade. Mas entendo que um liberalismo oriundo de uma cultura ocidental da cisão natureza/cultura, esta é a teoria que vem da cultura e quer se fazer natural, e este querer-fazer que a naturaliza no sentido de que a torna normal, a difunde e a impõe a tal ponto que parece imediata, se é que me entendem dada a dificuldade de formular a ideia.
Seria então dupla mesquinharia acreditar tanto na naturalidade (no sentido de não ser arbitrário, não haver outra possibilidade) da teoria quando na sua aplicação (esta não é uma crítica ao autor, mas ao liberalismo)?
Eis o trecho:
212
A intervenção de Lacan é muito importante, pois tira a filosofia moral da
esfera da psicologia — extremamente duvidosa, do ponto de vista científico, já
que pressupõe indivíduos a priori bons (como Rousseau) ou maus (como Hobbes) na
sua essência — para transformá-la num autêntico problema lógico. E, por sinal,
se Lacan tivesse ido um pouco mais longe nesse terreno, teria podido valer-se
de suas ruminações sobre a lógica, aquelas mesmas que despertavam o seu
interesse nessa época, para colocá-la a serviço de sua reflexão sobre os
eternos impasses da ética e as possíveis superações que a reflexão
psicanalítica acaso permitiria. A coisa vai do “dilema dos prisioneiros”, que
ele havia comentado, já em 1945,270 a seu interesse pela cibernética, a partir
da década de 1950.271
Um caminho extremamente inovador é aberto aqui, já que enriquece a discussão
sobre a ética e a escolha das máximas (egoísta ou altruísta) com as
contribuições da teoria dos jogos.272
Kant abriu o caminho nesse terreno, ao considerar que a escolha das máximas
depende de um “você deve” que só pode ser incondicional, porque é lógico. Lacan
propôs a primeira articulação possível entre as duas máximas, desenvolvendo
seus aspectos lógicos. Vieram em seguida as discussões sobre a escolha das
máximas a partir de uma reflexão sobre o famoso dilema dos prisioneiros, tal
como expresso não na versão complexa de Lacan, mas numa versão simplificada,
que costuma ser enunciada da seguinte maneira:
Suponhamos dois prisioneiros, A e B, cúmplices de um crime, detidos em celas
separadas, sem possível comunicação. O juiz propõe a cada um deles a seguinte
barganha: denunciar o outro em troca da suspensão da pena. Haveria, assim, três
possibilidades:
1º Ambos se denunciam. Neste caso, cada um deles será condenado a cinco anos de
prisão.
2º Nenhum dos dois denuncia o outro. Neste caso, cada um será condenado a dois
anos.
3º Apenas um dos dois denuncia o outro. Neste caso, aquele que denuncia será
libertado e outro será condenado a dez anos.273
Cabe lembrar que esse problema foi enunciado pela primeira vez dessa forma, na
década de 1950, por pesquisadores da RAND Corporation.274 Este problema logo
provocou inúmeras discussões científicas, tendo sido estudado de forma
sistemática na década de 1980 por Robert Axelrod, especialista americano em
ciências políticas, que introduziu uma variante suplementar, o tempo: o jogo é
repetido, de tal maneira que os participantes guardam na memória os encontros
anteriores.275
É esse problema, precisamente, que vamos encontrar no cerne dos estudos que
permitem avaliar a pertinência da escolha da máxima egoísta nas e pelas
sociedades liberais. Ou seja, esta máxima derivada da reviravolta da metafísica
ocidental, que aos poucos se impôs, como tentamos demonstrar, de Pascal a Sade.
Se fosse necessária uma confirmação da pertinência da orientação de nossa
investigação, poderíamos encontrá-la no fato de que precisamente essa máxima
está em discussão há trinta anos num dos mais importantes think tanks
americanos.276
Farei aqui como o professor Mascomo, indo diretamente aos resultados. A solução
ideal (assim considerada quando beneficia o maior número possível de
indivíduos), alcançada depois de uma série de cálculos teóricos, experiências
práticas e simulações em computador, é obtida quando o jogador adota
inicialmente a estratégia altruísta (chamada tit for tat, ou seja,
“toma-lá-dá-cá”), o que significa propô-la ao outro, para ver, sabendo que, em
seguida, deverá estar preparado para um recuo imediato a uma máxima egoísta,
que, portanto, deve estar pronta, ainda que ele não a use, necessariamente, em
função do que o outro fará.
Aqui poderíamos nos perguntar se uma dedução transcendental extremamente
complexa seria necessária para chegar a essa posição e nela se manter na ação
prática. Creio que não. É possível chegar a essa posição instantaneamente. Em
outras palavras, essa dedução transcendental pode ser feita inconscientemente:
ela surge então como a posição espontânea que permite a regulação ideal da
relação com o outro, advertindo o sujeito, antes mesmo que ele pense a
respeito, de que não deve infligir nem se sujeitar.277
Assim é que a dedução transcendental, consciente ou não, revela que a máxima
altruísta deve ser completada por uma máxima egoísta — o que poderia ser dito
de outra forma: a minha máxima kantiana deve, portanto, ser completada por uma
máxima sadeana, suscetível de ser usada não como estratégia primeira, mas como
recurso.
Lacan, portanto, tem razão. O único problema é que ele nem desconfia em que
medida pode ter razão. Não vê em que medida sua solução permite entender os
problemas contemporâneos nas sociedades liberais, cada vez mais presas da
máxima sadeana.
Eros versus Perversão
No que tange a Marcuse, concordo com o autor de que "Eros e Civilização" não assume que pode haver uma solução capitalista para o problema da mais-repressão e que os desejo pode ser infinitamente explorado via consumo.
Mas no meu entender isso não invalida a possibilidade de um arranjo social nos moldes defendidos pro Marcuse.
São duas formas possíveis de canalizar o desejo: uma aprisionadora, outra que liberta.
Trechos
Compilação parcial da seleção de trechos feita do livro todo... a ser completada um dia...
Zanga
58A zanga é provavelmente o primeiro jogo de cartas feito para levar a melhor
(tipo de jogo no qual os jogadores mostram alternadamente uma carta na mesa, e
aquele que jogou a carta mais forte, segundo as regras do jogo, se apodera de
tudo, abrindo e fechando as cartas). Foi muito jogado na França no século XVII
e no início do século XVIII, e continua em uso com regras muito semelhantes com
o nome de tresillo na Espanha, hombre [como na França] na Dinamarca e tridge na
Inglaterra.
Misc
103
A leitura de Mandeville permite entender o que muitos estudos econômicos
não conseguem explicar. Não teria sido possível o desenvolvimento do
capitalismo sem a liberação das paixões. Aí é que se encontra, em minha
opinião, a resposta a essa pergunta, até hoje sem resposta, concludente e
constantemente reiterada desde Marx. Por que exatamente o capitalismo, tendo
amadurecido desde a Idade Média, finalmente nasceu na Europa por volta de
1700, nas Províncias Unidas impregnadas de calvinismo, e depois na
Inglaterra? Por que, se em tantos lugares existiam poderosos mercados
tradicionais, nenhum se transformou em mercado liberal capitalista? Por que
essa transformação ocorreu na Europa por volta de 1700, e não nos séculos de
ouro do Império Romano, sob a dinastia dos Antoninos, tanto mais que a
primeira máquina a vapor, a eolípila, acabava de ser inventada por Héron de
Alexandria? Ou ainda na China, por exemplo, no apogeu da dinastia Qing, nos
séculos XVII e XVIII? Ou ainda no apogeu do Império Otomano, no século XVI,
por exemplo, sob Solimão, o Magnífico? Ou ainda na Índia, na época da
dinastia Maurya, no século IV antes de Jesus Cristo, durante a qual foi
escrito o primeiro tratado de economia política, intitulado Arthaçastra —
Instrução sobre a prosperidade material? E ainda poderíamos mencionar muitos
outros lugares. A única resposta possível parece-me a seguinte: as condições
materiais identificadas por Marx provavelmente estavam reunidas nesses
diferentes lugares (acumulação primitiva, tendo por um lado uma mão de obra
desenraizada e, por outro, fluxos de dinheiro), mas a condição moral, ou
antes, amoral, não estava. Quero dizer que nesses lugares as paixões eram
contidas em sistemas simbólicos poderosos, ao passo que aqui foram liberadas.
Essa liberação das paixões ao longo dos séculos XVII e XVIII é que permitiu a
entrada no capitalismo.
104
Nessa condição amoral reside certamente o segredo da irresistível penetração
do capitalismo em muitos sistemas tradicionais em todo o mundo: o capitalismo
pareceu libertador a muitos dos povos ainda presos a severas cláusulas
morais. E, de fato, ele o era — ao mesmo tempo trazendo consigo formas
absolutamente inéditas de alienação.
[...]
Mas, sobretudo, a colmeia é uma ilustração perfeita do gênio do Criador da
natureza, que consegue construir uma organização extremamente complexa,
implicando a divisão do trabalho entre os homens, a partir de uma única causa
muito simples: o amor próprio (chamado de self-liking por Mandeville).
Utilizando da melhor maneira possível este simples e mesmo estúpido amor
próprio, gerando todas as libidos possíveis, podemos chegar, sem precisar
intervir com leis jurídicas ou regras morais, a uma metáfora “admirável”, tão
perfeita quanto a da colmeia. Existe aí uma espécie de astúcia do Criador,
que utiliza os defeitos dos homens para criar, apesar deles próprios, uma
ordem perfeita que os transcende. É pura e simplesmente o projeto
cibernético, tal como viria a ser desenvolvido por Norbert Wiener, que já
está contido na ideia de colmeia, já que ela é organizada de acordo com um
programa perfeito de grande complexidade, que resulta de subprogramas muito
simples (comportando apenas algumas instruções) seguidos por cada um dos
habitantes.101
[...]
O que me parece analisar mais radicalmente a colmeia mandevilliana, no que
ela tem de extremamente inquietante para a liberdade humana, com esses homens
incapazes de sair de uma total alienação aos seus vícios, é o castelo
sadeano, que também se organiza a partir de uma exploração sistemática de
todas as paixões imagináveis e mesmo inimagináveis.
[...]
145
Se Marx tivesse lido Sade, não teria cometido um grave erro: não ter
visto que toda a economia também é uma enorme questão passional e pulsional.
Se Marx tivesse lido Sade, o mundo seria outro. Teríamos evitado a criação
desses monstros frios que foram as economias socialistas suspeitando de toda
paixão, exceto a paixão pelo chefe. Não teríamos tido essa divisão altamente
nociva entre Marx, por um lado, na economia dos bens, e Freud por outro, na
economia libidinal — cisão equivocada desde o início, que nenhum
freudo-marxista, nem mesmo da escola de Frankfurt, jamais foi capaz de
resolver. Se Marx tivesse lido Sade, poderíamos dispor de uma economia geral
das paixões. O mundo poderia ter sido reformado de outra maneira. Teríamos
evitado a captação e o desvio dos espíritos resistentes à teodiceia smithiana
nas falsas alternativas ao capitalismo representadas pelas economias
socialistas, que só poderiam levar ao mais lamentável dos fiascos.
Ao passo que, para Kant, era absolutamente necessário regular — a moral deve
ser baseada no imperativo categórico consistindo em se impor a si mesmo uma
lei na vida prática —, para Smith cabia, sobretudo, deixar fazer [laisser
faire], vale dizer, desregular — o que conduz logicamente a Sade.
[...]
Postulada essa distinção entre os dois Iluminismos, fica mais fácil indicar o
que distingue a modernidade da pós-modernidade. A modernidade é o equilíbrio
instável entre essas duas correntes opostas. Terá durado um século e meio. A
pós-modernidade é o recuo cada vez mais acentuado da zona transcendental que
remete ao que “não tem preço, mas uma dignidade” (Kant), em proveito do
princípio liberal, segundo o qual tudo tem um preço (Smith).
Com efeito, podemos conceber Sade como aquele que, no fim do século, se
apropriou dessas teses liberais, por sinal de maneira extremamente sadeana,
levando-as a suas últimas consequências e mostrando, de uma forma que tendo a
considerar irretocável, aonde conduz, do ponto de vista do ser-si-mesmo e do
ser-junto, a sua escolha, constantemente reiterada ao longo de seus textos,
da moral egoísta contra a moral altruísta.
Fazer de Sade um homem-chave do seu século, o século XVIII, é, portanto,
afastar-se das interpretações tão frequentes quanto anacrônicas que pretendem
considerá-lo arauto perfeito dos sistemas fascistas. Basta pensar, por
exemplo, na posição assumida por um autor tão estimável quanto Pasolini no
filme intitulado Salò ou Os cento e vinte dias de Sodoma, lançado no fim de
1975. É provável que Pasolini, irritado com as visões, cada vez mais
frequentes depois de 1968, de um Sade simpático, bon vivant, alvo de
perseguições dos obscurantistas de sua época, tenha pretendido reagir a esse
absoluto contrassenso. Com isso, situou a ação de Os cento e vinte dias… em
Salò, a cidade do norte da Itália onde Mussolini se refugiara no fim da
Segunda Guerra Mundial para fundar uma república fascista. Como sabemos, foi
o último filme de Pasolini: ele seria assassinado após o lançamento.
A morte trágica de Pasolini nos faz pensar. Não podemos, com efeito, passar por
cima de uma questão pungente: será que as circunstâncias de sua morte… não
desmentiriam sua tese? Pois ele foi morto, de maneira extremamente sadeana, não
por fascistas, mas por jovens extremamente liberados, tão liberados que não
tinham controle de suas paixões e pulsões, já que, pelo que sabemos, foi um
jovem prostituto romano de dezessete anos, um dos que eram frequentados por
Pasolini, que o matou a cacetadas no dia 1º de novembro de 1975, para em
seguida esmagá-lo várias vezes com seu próprio carro na praia de Ostia, perto
de Roma.
[...]
Situar Sade dessa maneira permite adiantar que o liberalismo tem duas faces:
uma face puritana, representada pelo “primeiro filho” de Mandeville, vale
dizer, Adam Smith, e uma face perversa, indissociavelmente ligada, representada
pelo “segundo filho” de Mandeville, Sade. Em outras palavras, devemos entender
o liberalismo como um sistema bifronte, à Janus, vale dizer, como um conjunto
perverso-puritano.
O que poderia ser dito assim: o liberalismo é Smith com Sade.
153
A tese que defendo, portanto, é a seguinte: Sade diz a verdade do liberalismo e
por esse motivo é que foi necessário aprisioná-lo durante toda a vida e
atirá-lo no inferno após a morte, enquanto o conto da harmonização dos
interesses privados pela mão invisível, prometido pela teodiceia puritana de
Adam Smith, se espalhava pelo mundo. A esse inferno das bibliotecas, exposto
apenas à crítica devoradora dos ratos e camundongos, é que Sade foi recolhido e
escondido por alguns eruditos durante dois séculos.
Marx e Sade
140
Essa entrada do capital, no negócio sadeano, é marcada pela referência
constante, no texto, a um outro lugar além do convento e do castelo. É a
fábrica, então nascendo, que verdadeiramente pode transfigurar o convento e o
castelo, permitindo-lhes alcançar a dimensão industrial. E, com efeito, o texto
sadeano se empenha em mostrar a possibilidade da industrialização do gozo.
Ora, para industrializar o gozo, é necessário:
1) Um aporte de capital. Acabamos de falar a respeito, a propósito do castelo
de Silling e do banqueiro Durcet. Silling, assim como outra mansão, o castelo
da Sociedade dos Amigos do Crime, da história de Juliette, são empreendimentos
baseados na iniciativa de membros muito afortunados da alta nobreza ou da
grande burguesia. Trata-se, portanto, de um investimento que envolve modos de
gestão muito precisos e, por sinal, indicados já na introdução de Os cento e
vinte dias…:
A sociedade havia criado um fundo comum alternadamente administrado por cada um
de seus membros durante seis meses; mas os recursos desse fundo, devendo servir
apenas aos prazeres, eram imensos. Sua enorme fortuna permitia-lhes coisas
muito singulares a esse respeito, e o leitor não deve espantar-se quando lhe é
dito que anualmente eram destinados dois milhões exclusivamente aos prazeres da
boa mesa e da lubricidade.
2) Uma provisão de matérias-primas, vale dizer, corpos prontos para serem
reduzidos a órgãos para o gozo, em outras palavras, prontos para serem
des-organizados, desmembrados em órgãos, em condições de serem integrados
pedaço a pedaço à indústria do gozo.
3) Um pessoal de organização e intendência, além de capatazes, capazes de
explorar da melhor forma essa matéria-prima e fazer funcionar uma tal máquina.
Entre outras coisas, esse pessoal serve para cuidar das cadências, como aqui,
em Juliette: “Sob nossas bocas, as bocetas, os paus, os cus se sucediam tão
rapidamente quanto o desejo; por outro lado, mal os aparelhos que masturbávamos
haviam descarregado, outros surgiam” (Juliette, 5ª parte). Ou aqui, em Os cento
e vinte dias…: “É preciso que a coisa ande muito depressa; cada moça deve dar
vinte e cinco chicotadas, e no intervalo desses vinte e cinco golpes é que a
primeira chupa e a terceira caga.”
O modelo antecipado por Sade é claramente o da cadeia de montagem industrial.
Sessenta anos antes de Marx, Sade entendeu que a produtividade está diretamente
ligada ao fator tempo (O Capital, 1ª seção, 1º capítulo).
141
O que vemos começar a funcionar é uma manufatura de um tipo especial, na qual
os corpos são integrados em uma grande máquina de produção de gozo. A ironia de
Sade em relação aos templos smithianos (vale dizer, as empresas da primeira
revolução industrial), em que se realiza o maravilhoso plano secreto da
natureza, é feroz. Reconhecemos aí a atitude assassina do descendente de uma
velha família nobre que considera com desprezo as realizações de que tanto se
orgulha a burguesia conquistadora.
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É notável que Sade, grande anunciador da Cidade perversa, tenha pensado que o
gozo podia industrializar-se, graças, entre outras coisas, à inserção de
algumas máquinas-ferramentas, antepassados dos atuais sextoys. Por exemplo,
máquinas masturbadoras ou chupadoras feitas de roldanas, molas e engrenagens,
que são engatadas no senhor e funcionam como substitutos de órgãos, de tal
maneira que, quando os agentes humanos estão presentes, é necessário que seja
visível apenas a parte do corpo que fornece o gesto útil ao gozo (a mão, o
pênis, a boca, o ânus):
Então Francaville retirou um tecido de cetim rosa que recobria o otomano… Oh!
Que assento se encontrava sob o tecido! […] [uma mulher podia ajoelhar-se],
suas mãos […] iam pousar no baixo ventre de dois homens que assim colocavam nas
mãos da mulher uma máquina monstruosa que era a única coisa que se via: o resto
do corpo, oculto por baixo de panos negros, não era visto. Uma nova mecânica
muito mais singular era operada sob o ventre da mulher […]. De toda essa
mecânica resultava que a mulher, sobre o sofá movido pelas molas adaptadas,
nele era a princípio molemente estendida sobre o ventre, penetrada por um
consolo, chupada por uma jovem, masturbando um pau com cada uma das mãos,
oferecendo o cu ao pau bem real que vinha sodomizá-la e alternadamente
chupando, conforme o gosto, um pau, uma boceta e mesmo um cu.164
143
Cabe notar que a sociedade-fábrica de produção/consumo do gozo de Sade é uma
sociedade sem restos, onde tudo pode ser explorado:
“Vamos, minha criança”, diz ele, “mãos à obra; a merda está pronta, eu a senti,
lembre-se de cagar aos poucos e sempre esperar que eu tenha devorado um pedaço
antes de expelir outro. Minha operação é longa, mas não a apresse. Um tapinha
nas nádegas servirá de aviso para expelir, mas que seja sempre aos poucos.”
Tendo-se então colocado o mais confortavelmente possível em relação ao objeto
de seu culto, ele cola sua boca e eu lhe entrego quase imediatamente um pedaço
de bosta do tamanho de um pequeno ovo. Ele o chupa, virando-o e revirando-o mil
vezes na boca, mastiga-o, saboreia-o e, ao fim de dois ou três minutos, vejo
claramente que o engole.165
Estamos lidando com um sistema perfeito, sem restos, já que os dejetos são
reciclados. E, por sinal, é exatamente onde os comentadores mais entusiásticos
de Sade, como Maurice Heine, não aguentam mais. Mas estão errados, pois é aí
que a sociedade-fábrica da produção/consumo encontra seu regime ideal, seu
regime ecológico perfeito, pela acoplagem da máquina-boca, para falar como
Deleuze, à máquina-cu.
144
Marx fez uma análise impecável do processo de produção. O capitalista não paga
ao proletário o produto de seu trabalho, mas apenas a soma necessária para a
reprodução de sua força de trabalho, de tal maneira que capta a diferença (a
mais-valia) que, com o tempo, permite a constituição do capital. Mas Marx não
se aventurou na análise do processo de consumo. Sade é o único que articulou a
produção (pelos proletários) e o consumo (pelo senhor). Em outras palavras, a
mais-valia extraída também é uma reserva de fundos que podem ser
incessantemente convertidos em gozos de toda natureza — o que Lacan muito
justificadamente chamaria, em seu seminário de 1968-1969 intitulado De um Outro
ao outro (livro XVI, Le Seuil, Paris, 2006), de “o mais-gozar”.166 Graças a
Sade, ficamos então sabendo algo essencial: o consumo é um gozo. Um gozo
proibido ao proletário produtor.
Marx e Sade
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Se Marx tivesse lido Sade, não teria cometido um grave erro: não ter visto que
toda a economia também é uma enorme questão passional e pulsional. Se Marx
tivesse lido Sade, o mundo seria outro. Teríamos evitado a criação desses
monstros frios que foram as economias socialistas suspeitando de toda paixão,
exceto a paixão pelo chefe. Não teríamos tido essa divisão altamente nociva
entre Marx, por um lado, na economia dos bens, e Freud por outro, na economia
libidinal — cisão equivocada desde o início, que nenhum freudo-marxista, nem
mesmo da escola de Frankfurt, jamais foi capaz de resolver. Se Marx tivesse
lido Sade, poderíamos dispor de uma economia geral das paixões. O mundo poderia
ter sido reformado de outra maneira. Teríamos evitado a captação e o desvio dos
espíritos resistentes à teodiceia smithiana nas falsas alternativas ao
capitalismo representadas pelas economias socialistas, que só poderiam levar ao
mais lamentável dos fiascos.
146
Poderíamos responder que Marx não teve a menor necessidade de ler Sade, pois
desenvolvera um conceito que permite a análise do processo de consumo, o
“fetichismo da mercadoria”. Esse conceito é apresentado num curto texto
(algumas páginas) que constitui a quarta e última parte do primeiro capítulo do
livro I do Capital, intitulada “O caráter fetiche da mercadoria e seu segredo”.
E, de fato, ele permite entender por que, no regime capitalista, o homem encara
a mercadoria como o “selvagem” vê um ídolo: ela possui uma qualidade mágica, a
de poder ser trocada por qualquer outra mercadoria — e podemos ver aonde isso
conduz, ao fetichismo do dinheiro. Se a mercadoria é fetichizada, é por ocultar
aquilo que é na realidade, e que a “ciência” (marxista) enuncia assim: a
mercadoria é apenas o tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la,
ou seja, trabalho abstrato, e, portanto, remete apenas a relações sociais. Esse
trabalho é considerado abstrato porque, em oposição ao trabalho concreto, torna
abstrata toda qualidade sensível e todo valor de uso — e é precisamente isso
que leva a mercadoria a funcionar como fetiche.
[...]
Há os que pensam (os marxistas ortodoxos) que Marx tem razão de destacar o
domínio do trabalho abstrato sobre o trabalho concreto e os que consideram
(toda uma corrente crítica do marxismo ortodoxo) que Marx deplora e denuncia o
trabalho abstrato, daí extraindo uma consequência radical: é necessário pôr fim
ao trabalho assalariado.
[...]
O texto de Marx é, na verdade, fundamentalmente ambíguo. E todo o mérito dos
trabalhos críticos está em decidir no lugar de Marx e propor, contra as
habituais interpretações marxistas, uma leitura radical do “fetichismo da
mercadoria”. Entretanto, essas críticas, permanecendo escoradas em Marx, e
mesmo num Marx corrigido, deparam-se com um considerável obstáculo. Elas não
abordam uma questão decisiva. É verdade que a mercadoria é apenas tempo de
trabalho socialmente necessário para produzi-la, mas é precisamente a isso que
não se dá a menor importância quando se desfruta de um objeto. E mais:
desfrutar de um objeto também é subitamente abolir o trabalho socialmente
necessário para sua produção. Pois nesse caso está em ação uma outra lei. A lei
que, no consumidor, joga com a dinâmica que vai da pulsão a sua satisfação.
Ora, esta segunda lei é ignorada por Marx. Foi precisamente o que permitiu as
interpretações dos marxistas ortodoxos. Pois sendo o consumo sempre frio e
puramente utilitário em Marx, era fatal que o marxismo real engendrasse apenas
monstros frios gerados pela “ciência”, enunciando incansavelmente essa “lei” do
trabalho socialmente necessário e esquecendo a outra. Creio assim que é
necessário não só conduzir o texto de Marx na direção de uma crítica radical do
“fetichismo da mercadoria”, como ler nessas ausências o que permitiu o
desenvolvimento, com as trágicas consequências que sabemos, do erro e do horror
dos marxismos reais.